terça-feira, 6 de outubro de 2009

Joel-Peter Witkin & Câmara Clara de Roland Barthes  - uma análise de conteúdo

Inserido na Disciplina de Artes Plásticas e Novas Tecnologias e sob a regência do Prof. Doutor Pedro Andrade, o presente trabalho apresenta-se como uma reflexão teórica de análise de conteúdo dos trabalhos fotográficos, pré digitais de 1994, do fotógrafo e artista Joel-Peter Witkin partindo da obra do espirito criador de Roland Barthes em Câmara Clara . Foi elaborado pelo mestrando Eduardo Ventura para ser postado no blogue criado para a referida Disciplina, o Supositorium, que pretende ser um espaço de partilha de conteúdos culturais e artísticos. Este trabalho surge na articulação de duas perspectivas: a das  Ciências Sociais e Humanas e das Artes visuais.

A Câmara Clara
        
Barthes, em A Câmara Clara, tenta elaborar uma teoria sobre a imagem fotográfica mas resiste em apresentar conclusões generalizadas sobre o estatuto da fotografia. Prefere falar da experiência de estar diante de algumas imagens em particular, deixando claro que seu ponto de vista não é o de um produtor de fotografias (Operator), nem daquele que é representado nelas (Spectrum), mas sim o de um observador (Spectator). O Spectator não é um observador idealizado e abstracto, mas sim um que se assume ligado às imagens escolhidas através da sua história pessoal e do afecto. Barthes fala de “fotografias” e não da “Fotografia”, assumindo cada imagem como uma experiência singular para um observador singular, num campo de experiências concretas. O autor refere-se a uma experiência de confronto entre o observador e alguma fotografia em específico, numa perspectiva que não se reduza à reflexão mas que seja capaz de “tocá-lo”, independentemente do que busca ou compreende, rejeitando generalizações sobre  o objecto fotográfico. A este fenómeno, Barthes chama de Punctum.
O Punctum é algo que toca o Spectator, independentemente daquilo que seu olhar busca, num processo que Barthes refere como uma aventura (Adventure), algo que é desencadeado por um “devir” que a fotografia provoque no observador. É um fenómeno que aparece ligado ao afecto e que parece decorrer da própria imagem, desligado de um outro fenómeno ao qual chama de Studium. Neste caso, o Studium funciona, de alguma forma, como um contraponto ao Punctum porque se refere a uma leitura da imagem baseada em critérios objectivos e definidos. O Studium está relacionado com uma metodologia específica para a abordagem da imagem, ao contrário do Punctum, que opera por conta própria, residindo na imagem.
O Punctum seria um detalhe na imagem que, por uma força que concentra em si, atinge o observador e lhe mobiliza involuntariamente o afecto, sem ligação à necessidade de interpretar, recorrendo a um repertório de conhecimentos técnicos ou a uma bagagem cultural. Com o Punctum, a imagem fotográfica perde o seu carácter de mediação, reconhecendo nela uma parte da própria “realidade” que a gerou, sobrepondo os conceitos da representação com as do seu referente.

Em A Câmara Clara, a fotografia é tomada por uma “emanação” do referente que afecta, à posteriori, o observador, como algo que vem do passado na sua direcção. Barthes, refere-se então ao objecto fotografado como Spectrum, como “o retorno do morto”, tal como uma existência do passado que se manifesta no presente.
Com esta “emanação” do Spectrum, é acrescentado ao Punctum uma nova dimensão temporal: o elemento do Punctum pode não ser apenas um detalhe mas algo dinâmico, um “movimento revulsivo, que inverte o curso da coisa”.

A relação de Witkin com o vidro sempre foi próxima, o seu pai e os seus tios eram vidraceiros e o seu primeiro trabalho foi partir os vidros trincados para que depois o seu pai os pudesse repor. Certa vez, um caco de vidro entrou na parte branca do olho do fotógrafo e o seu pai, com um palito de fósforo, virou-lhe a pálpebra e tirou o caco. Para Witkin, essa foi a comunicação mais próxima que teve com o seu pai.
Nesta fotografia (Anexo 1, Fig.1), foi utilizado o corpo de um jovem “punk”, ruivo, com algumas tatuagens, encontrado morto nas ruas da cidade do México. Witkin iniciou seu trabalho tirando algumas fotografias apenas de registo. Posteriormente, tentou realizar algumas fotografias encenadas (Anexo 2, Fig.2), colocando-lhe um peixe nas mãos, mas nenhuma das imagens o satisfez. Pediu então para os técnicos prosseguirem com a autópsia. Aquando deste procedimento, Witkin, ao olhar para o corpo do rapaz, viu que aquele homem não era mais um “punk”, mas que tinha ganho elegância. Os seus dedos aparentavam ser mais longos, como que se quisessem alcançar a eternidade.
Esta experiência, relatada pelo próprio Operator, serviu como o conceito original que permeia a elaboração da fotografia The Glassman. A fragilidade do corpo humano foi denunciada pelo fotógrafo, remetendo para o facto de este mesmo corpo aceitar grandes colagens na forma (por meio de plásticas, transplantes, tatuagens) mas de, no entanto, isso não ser suficiente para conter vida nele. Esta fotografia encerra um misto de vida e morte, pois, ao mesmo tempo que sabemos que o referente fotográfico está morto, através da costura na barriga,  também vemos o homem sentado, olhando de frente, de relance em relação à câmara. A pose engendrada pelo fotógrafo remete à imagem católica clássica de São Sebastião (Anexo 3, Fig.3), amarrado, de olhos abertos e suplicantes. Não é o morto, nem a cena da sua morte que vemos em The Glassman, mas sim o corpo do referente em pose, depois de ter passado pela autópsia e de ser cuidadosamente colocado daquela forma para a realização da imagem. As fotografias de Witkin, não sendo esta excepção, através dos seus temas e das composições, denunciam-se como imagens simbólicas, distanciando-se da categoria de imagens que se impõem ao Spectator enquanto objectivas e transparentes. A imagem fotográfica permite que o olhar do observador reconstitua a dimensão temporal perdida através do vaguear dos olhos sobre esta.
Esta dimensão da fotografia de Witkin permite revelar a essência das câmaras fotográficas como aparelhos que constroem simulacros, fabricando figuras autónomas que significam as coisas, e não que simplesmente as reproduzem.

The Glassman

I think that what makes a photograph so powerful is the fact that, as opposed to other forms, like video or motion pictures, it is about stillness. I think the reason a person becomes a photographer is because they want to take it all and compress it into one particular stillness. When you really want to say something to someone, you grab them, you hold them, you embrace them. That’s what happens in this still form.
Joel-Peter Witkin

Em toda a imagem fotográfica, existe uma simbiose entre a máquina que capta a imagem e o agente humano (relação aparelho-Operator) que aparentemente não parece alterar ou influenciar o elo entre imagens e o seu significado, fazendo com que o spectator não sinta a necessidade imediata de decifrar a imagem. Porém, os processos e intenções presentes no acto da concepção das imagens são inúmeros e, muitas vezes, permanecem ocultos aos olhos daqueles que as observam. Isto deve-se à automatização da sua impressão sobre uma superfície bidimensional, como se a imagem resultante fosse assimbólica, fazendo-se crer como uma directa representação do mundo.
O ser humano interage através de símbolos, elaborando-os na sua mente e transferindo-os para a superfície da imagem por intermédio da sua materialidade. Este processo, muito comum na pintura, faz com que o receptor, ao vislumbrar uma obra , reconheça a presença do autor. O tema ou alguns elementos da composição, traduzem parte das intenções do autor de uma obra enquanto produtor de uma imagem.

As fotografias de Witkin referem-se normalmente a obras pictóricas. Esta dimensão da sua fotografia estará provavelmente relacionada com essa característica da produção de imagens, em especial das picturais, de poderem ser apreendidas como produtoras de símbolos, funcionando como denúncia ao falso carácter objectivo das imagens meramente técnicas.

A imagem fotográfica pode ser um símbolo que carece de ser interpretado. Witkin, por intermédio das suas fotografias, impõe o seu Studium e o seu Spectrum enquanto fotógrafo e autor, aos olhos do Spectator.
O fotógrafo age no corpo do referente, dissimulando-o e tornando-o vivo, por meio do olhar, e morto através da costura no seu peito. O jovem homem morto é apenas o objecto da fotografia, numa dimensão de carácter meramente técnico. O sujeito da foto é o fotógrafo. “Não é mais o sujeito que representa o mundo, é o objecto que refracta o sujeito e que subtilmente, através de todas as nossas tecnologias, lhe impõe a sua presença e a sua forma aleatória”  (Baudrillard, 1997).